Há muito muito tempo... uma certa miúda algarvia de 14 anos chegava a casa depois de ter passado na única livraria de uma tal cidade (quase) no fim do mundo... bom, da península... Qualquer coisa assim... estreitada até que esta se rebela e se distende, como um feixe de luz muito fino alonga anti-intuitivamente.
O livro era avermelhado e dizia qualquer coisa na capa como “as poesias de Álvaro de campos”. A miúda fechou a porta do quarto e ligou o radio num volume pianissimo, para não incomodar os fantasmas.
Na 1ª página estava o Santo Graal de todo o adolescente perturbado.
“Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida
Se ousasse matar-me, também me mataria...
ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
a que chamamos mundo?
a cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim”
(....)
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
se queres matar-te, mata-te...
não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos quimicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memoria dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
não ves que não tens importância absolutamente nenhuma?
(...)
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-quimico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não cobrindo nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pele névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo... “
A miúda saltou pelas páginas absorvendo as enérgicas palavras do poeta como se fossem maçãs podres jogadas para cima de um pântano. O húmus cobria agora as paredes brancas e a mobilia riscada. Maldita sonolência de optimismo! Talvez sejam os olhos que lêem mais do que as mãos de quem escreve que ditam o real sentido das palavras. O que se pretende evidenciar com a ideia de que se não se quer estar vivo não vale a pena estar vivo é que é preciso querer estar vivo para estar realmente vivo. É preciso não estar à espera da caridade dos outros. Ser auto-suficiente de alegrias.
Estatísticamente somos todos iguais. Estamos é enfiados nos nossos micro e nano-humanismos.
Estou zangada. Desisti outra vez do teste. Se calhar passava, mas passar assim... com um pé na porta e outro na sala... não! Ou salto para fora da janela ou não há nada para ninguém.
“ Lisbon Revisited [1923]
... Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquitas.
....
Que mal fiz eu a esses deuses todos?
Queriam-me cansado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrario de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
.....
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
”
Assim falava Álvaro de Campos...
quinta-feira, junho 01, 2006
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