quinta-feira, abril 13, 2006

Adeus Avó

Acordei hoje com a minha irmã a chorar compulsivamente e a tremer por todos os lados.

Pausou entre soluços e balbuciou:
a avosinha morreu.

Não consegui ter outra reação que não abraça-la e deixar o silencio encher a cratera que havia dentro de nós, resultado de uma explosão inesperada: a ausência.

É a primeira vez que alguém próximo de mim morre e dizer a verdade não sei ao certo como lidar com isto. Nunca tinha pensado muito na morte dos outros. Arrumei o assunto como aquilo depois do qual não há mais consciência e deixei estar lá no fundo do armário numa caixa que, descobri hoje, já tinha teias de aranha e bichos como os cadáveres.
Abriu-se bruscamente para me cobrir com o lixo que lhe deixei em cima e reclamar sobre a simplicidade lá dentro.

Creio que muita da quase tranqüilidade que sinto se deva ao facto de estar tão longe. Estar longe faz das noticias factos jornalísticos. Coisas que acontecem aos outros. A distancia priva-nos das imagens, dos cheiros , enfim das coisas que se aliam á interpretação na memória. Ficamos só com as palavras, evidencias.


Tenho medo de fazer a mala e ir embora. Parece que sempre que vou ao algarve alguma coisa má acontece. A ultima vez foi o acidente... três carros partidos e meia dúzia de pontos na cabeça ao meu pai. Tudo escassos segundos antes de o comboio entrar na estação porque... pronto... era para o choque ser maior e sentir uma espécie de responsabilidade infantil sobre os acontecimentos. O facto é que se eu não chegasse nada daquilo aconteceria. E agora isto. Parece que as coisas más esperam que tenha tempo para elas, para não me passarem ao lado. Para me apanharem em branco e terem tempo de ser minuciosas nos detalhes que pintam nas paredes da minha consciência como murais.

Ainda não falei com a minha mãe.. não tive coragem. Sou uma tipa cobarde e inerte, especialmente no que trata de emoções. Não há demonstração para as emoções, nem mesmo estatísticas, aproximações. O ser humano é uma espécie de partícula carregada no seio de múltiplos campos que se intersectam uns aos outros sem aviso. Estou a falar de ”ventos” electricos porque não quero pensar noutra coisa. Porque é mais facil pensar em material inerte.

O meu avô é que ficou abalado. Duas tromboses e 8 decadas depois de estar nesta terra, foi-se o alicerce. Sabe-se que a tristeza come velhotes ao almoço... e... bom... verbalizam-se os factos ao compreender que não lhe resta muito tempo. Há uma espécie de leis de de-morgan para os casais idosos. Se A&B a vida toda , quando !A + !B => !B + !A .

O mau da morte não é a perda de consciência, a perda de consciência implica que não se tenha consciência disso. O mau da morte são os espaços vazios. Os físicos e os outros.


Finalmente falei com a minha mãe.. tinha de perguntar o que tinha acontecido. É daquelas coisas que não queremos saber mas temos de saber. Queria que ela não tivesse sofrido. Mas as minhas ideias idílicas foram desfeitas. Aparentemente teve convulsões e foi repentino, a meio da noite. O meu avô já não chegou a tempo, diz a minha mãe que ela se estremecia e quando ele lá chegou deu o ultimo suspiro. Depois acrescentou: “morreu sozinha coitadinha“.

Para explicar o papel dos meus avós maternos, alem do papel usual de avós. Digamos que foram sempre uma espécie de porto de abrigo. Não vou explicitar os pormenores, porque já não tenho energia para pensar na FDP da minha infância, mas fica implícito que foi uma desgraça e nos piores momentos era lá que nos refugiávamos. Portanto agora é como se cai-se uma coluna de suporte. Como se tivesse desabado a caverna. Aquela coisa que sem explicação lógica assumimos: era de pedra e ia estar ali muito tempo.


Ainda tenho dificuldade em aceitar que nunca mais vou falar com ela. Queria acordar agora e pensar: “ohhh mas que pesadelo medonho”. Mas não. Não há mais conforto que um universo paralelo onde tenho outra oportunidade para lhe dizer o quanto ela significa para mim.


Quando chegar ao algarve hoje, não vai estar ninguém à minha espera. Virtude da azafama que por lá vai. Achei melhor assim. Se alguma coisa acontecer, não acontece em virtude da minha chegada. Estou sozinha em comunhão com os outros. Acho que precisava dessa distancia.


“logo nas coisas mais profundas e mais importantes estamos indizivelmente sós .”
Rainer Maria Rilke
in Cartas a um jovem poeta

Sem comentários :